quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Bon Po

O termo tibetano bön, recitação ou invocação, designa vários movimentos religiosos que surgiram em Shang-shung, no oeste do Tibet, antes da introdução do buddhismo. Seus sacerdotes, chamados bönpos (tib. bon po) ou shens (tib. gshen), faziam práticas xamânicas e animistas, divinações, curas e, exorcismos. Depois do século XI, else desenvolveram um sistema religioso próprio, muito semelhante aos das escolas buddhistas tibetanas.
A história tradicional diz que o Bön surgiu em Ölmo Lungring (tib. 'Ol mo Lung ring), no país de Tagzig (tib. rTag gzigs), talvez uma região persa a oeste do Tibet. A hagiografia de seu fundador, Tönpa Shenrab Miwoche (tib. sTon pa gShen rab Mi bo che), é muito semelhante às do Buddha Shakyamuni e de Padmasambhava. Shenrab, suas esposas, filhos e discípulos teriam difundido o Bön e, eventualmente, os ensinamentos teriam sido levados ao Tibet.
Antes da chagada dos ensinamentos de Shenrab, o Bön era dividido em duas categorias, Dübön (tib. Dud bon) e Tsenbön (tib. Tsan bon); depois. ouve uma certa homogeneizaçã o e o abandono de certas práticas, como os sacrifícios. O Bön e o buddhismo tibetano tiveram influências mútuas. O Bön atual continua a possuir características próprias, como a invocação de espíritos, oferendas e divinações.
Nos tempos antigos, cerimônias especiais eram realizadas para trazer vida longa e benefícios aos reis. Segundo o Bön, existem diversos deuses, demônios e espíritos, que habitam praticamente em todos os lugares.

A organização monástica do Bön é semelhante ao sistema buddhista tibetano, assim como a literatura e os ensinamentos da Grande Perfeição (tib. Dzogchen / rDzogs chen) geralmente associados à escola buddhista Nyingma. Os ensinamentos do Bön são classificados em Quatro Portais e o Tesouro como o Quinto (tib. Goshi Dzönga / sGo bzhi Mdzod lNga):

1. Águas Brancas (tib. Chabkar / Chab dKar), práticas tântricas, esotéricas;
2. Águas Negras (tib. Chabnag / Chag nag), ritos mágicos e comuns para fortes, funerais, doenças etc.;
3. Terra de P'han (tib. Phanyül / 'Phan yul), regras monásticas e conceitos filosóficos;
4. Guia do Senhor (tib. Pönse / dPon gsas), práticas da Grande Perfeição;
5. Tesouro (tib. Thothog / mTho thog), aspetos essenciais dos outros quatro portais.

Outro modo de classificação dos ensinamentos é chamado Nove Veículos do Bön (tib. Thegpa Rimgu'i Bön / Theg pa Rim dGu'i Bon). Os quatro primeiros são a causa, os quatro intermediários são o resultado e o último é a Grande Perfeição.

Atualmente, o Bön tem sofrido muito com a invasão chinesa. Muitos de seus adeptos se refugiaram na Índia (em Dolanji, Dolpo, Mustang) e no Nepal (em Kathmandu).

Um pouco de tradição

A tradição oral afirma que a religião Bön teve início há mais de dezessete mil anos, mas os estudiosos modernos acreditam que ela começou muito depois. Em ambos os casos, a religião Bön é reconhecida como a religião nativa do Tibete e a origem de muitas tradições espirituais.

O Yungdrung Bön (Bön Eterno) foi o primeiro caminho completo de libertação espiritual no Tibete. Começou com o Buda Tonpa Shenrab, nascido na família Mushen. Seu pai era Gyalbon Thokar e sua mãe Yoche Gyalzhema. Eles moravam em Tazig 'Olmo Lung Ring, que alguns acham que ficava a noroeste do Tibete e, outros, que era a terra mítica de Shambhala.

A tradição afirma que Bön tinha três "portas" ou origens. A primeira era Tazig 'Olmo Lung Ring. A segunda ficava na Ásia Central, possivelmente concentrada na região onde estava situada a antiga Pérsia. Os historiadores acreditam que a religião Bön estava espalhada pela Ásia Central antes de o Islã chegar e dominar as culturas locais, e que muitas antiguidades encontradas na Ásia Central, consideradas budistas, são na verdade Bön. A terceira era o reino de Zhang Zhung, que englobava uma grande parte do que é hoje o Tibete ocidental. Os ensinamentos começaram na primeira porta, espalharam-se através da segunda e finalmente foram ensinados em Zhang Zhung e no Tibete.

Conta a lenda que Tonpa Shenrab chegou à terra que é hoje o Tibete meridional em busca de cavalos roubados por um demônio. Ele visitou a montanha sagrada Kong-po, que os peregrinos ainda circundam no sentido anti-horário, a maneira Bön. Quando Tonpa Shenrab chegou, encontrou um povo primitivo cuja prática espiritual se baseava no apaziguamento de espíritos por meio do sacrifício de animais. Ele pôs um fim ao sacrifício, ensinando o uso de formas animais feitas com farinha de cevada nas oferendas, prática até hoje comum entre tibetanos de todas as tradições.

Como no caso de todos os budas, Tonpa Shenrab ensinava de acordo com a capacidade dos alunos. Ao perceber que o povo de Zhang Zhung não estava preparado para os ensinamentos superiores da libertação, ele só ensinou os veículos inferiores, xamanistas, e rezou para que, por meio da perseverança, da devoção da aplicação, eles se preparassem para os veículos superiores do sutra, do tantra e do Dzogchen. E com o tempo, todos os ensinamentos de Tonpa Shenrab chegaram a Zhang Zhung.

Séculos mais tarde, durante o período do segundo rei tibetano, Mu Khri Tse muitos ciclos de ensinamentos Bön, tântricos e Dzogchen, foram traduzido Zhang Zhung para o tibetano. Embora os ensinamentos já existissem no Tibete há séculos, por transmissão oral, esta era a primeira vez que eram registrados na linguagem escrita tibetana. Durante muito tempo, Zhang Zhung e a Lí ngua Zhang Zhung foram considerados apenas míticos pelos estudiosos ocidentais, essa visão está sendo reavaliada à medida que mais fragmentos da linguagem Zhang Zhung são descobertos.

Segundo a tradição, os sete primeiros reis tibetanos teriam morrido sem deixar um corpo físico, o que é um sinal de grande realização espiritual. Alguns estudiosos acreditam que eles alcançaram o "corpo de luz", um sinal de iluminação específico do Dzogchen, o que sugere que os ensinamentos Dzogchen já existiam no Tibete naquela época. Os eruditos budistas acreditam que a tradição Dzogchen veio da Índia, e o Bön de fato reconhece que uma das tradições Dzogchen chegou ao Tibete através desse país, embora os principais ciclos de ensinamento Dzogchen tenham se originado em Zhang Zhung.

Os principais ensinamentos Bön estão incluídos em Os Nove Caminhos, ou os Nove Veículos. Trata-se de nove categorias de ensinamentos, cada uma com visão característica, bem como práticas e resultados próprios. Por exemplo veículos inferiores estão relacionados à medicina, à astrologia, à adivinhação assim por diante. Acima deles estão os ensinamentos do sutra e do tantra. Finalmente, o veículo superior é o ensinamento Dzogchen, a Grande Perfeição. Existem tradicionalmente três versões dos Nove Caminhos, conhecidas como Tesouros do Sul, do Centro e do Norte. Neste livro, as informações sobre xamanismo derivam fundamentalmente do Tesouro do Sul. O Tesouro do Centro é muito próximo dos ensinamentos do Budismo Nyingma. O Tesouro do Norte foi perdido. Cada Tesouro abrange alguns aspectos dos ensinamentos do sutra, do tantra e do Dzogchen. Além disso, há quinze volumes que contêm as principais biografias do Buda Tonpa Shenrab.

Segundo estatísticas chinesas, Bön é o segundo grupo mais populoso do Tibete e os Bön-pos são encontrados em todas as regiões do país. Os antigos ensinamentos ainda são seguidos por praticantes de yoga monásticos e leigos e, já no século XX, houve mestres Bön que alcançaram o "corpo de arco-íris". Este é o sinal supremo da completa realização na tradição Dzogchen: na hora da morte, o praticante de grande aperfeiçoamento liberta os cinco elementos que constituem o corpo. Ele os dissolve na sua essência, que é a pura luz elementar. Durante o processo, a substancialidade do corpo se dissipa numa exibição de luzes multicores, o que explica o nome de corpo de arco-íris. As vezes o cadáver desaparece, ficando apenas o cabelo e as unhas. Seja como for, a aparição do corpo de arco-íris é o sinal de que o praticante alcançou o mais elevado nível de realização e não está mais limitado pelos dualismos matéria e mente ou vida e morte.

Depois que os chineses dominaram o Tibete, um rigoroso programa de treinamento para monges Bön teve início no mosteiro Menri, em Dolanji, H. P, na índia, e no mosteiro Tristsen Norbutse, em Kathmandu, no Nepal. Esse treinamento foi realizado graças ao árduo trabalho de S. S. Lungtok Tenpai Nyima Rinpoche, Lopon Tenzin Namdak Rinpoche e dos monges mais antigos. O programa educacional conduz ao grau Geshe. A primeira turma formada fora do Tibete, da qual fiz parte, graduou-se em 1986.

Muitas das tradições Bön, ao lado de várias tradições budistas tibetanas, foram perdidas durante a dominação chinesa. Muitas outras tradições estão ameaçadas. No entanto, a religião Bön e o Budismo do Tibete estão lançando raízes no Nepal e começando a se espalhar pelo mundo.

Como alguns leitores talvez saibam, há muitas interpretações incorretas da religião Bön, mesmo entre budistas tibetanos. O Bön teve o destino de muitas religiões nativas, destino esse semelhante ao das religiões da Europa e das Américas quando o Cristianismo foi introduzido. Uma nova religião que se espalha numa cultura, muitas vezes garante seu crescimento referindo-se à religião nativa em termos negativos, como algo a ser superado e rejeitado.

Notei que muitos tibetanos, até mesmo altos lamas que não estão familiarizados com a tradição ou a literatura Bön, costumam passar adiante opiniões negativas mal informadas sobre essa tradição. Eu não entendo essa atitude. É claro que esse preconceito não é dirigido apenas à tradição Bön — o preconceito existe entre as escolas do Budismo Tibetano também. Acrescento essa observação para todos os alunos de Bön, para que saibam desse triste preconceito antes de depara¬rem com ele. Agora que as formas de espiritualidade tibetanas estão saindo do Tibete para o resto do mundo, espero que a tacanhice do preconceito seja deixada para trás.

Por sorte, há muitos budistas tibetanos, leigos e monges, chefes de família comuns e altos lamas, que são herdeiros do movimento náo-sectário que floresceu no Tibete no século XIX. A mais eminente voz tibetana que defende hoje em dia a tolerância e a compreensão é a de Sua Santidade, o Décimo Quarto Dalai Lama, que reconheceu formalmente a tradição Bön como uma das cinco principais tra¬dições do Tibete. Em várias ocasiões, ele ofereceu apoio a S. S. Lungtok Tenpa'i Nyima Rinpoche e a Lopon Tenzin Namdak Rinpoche, pedindo que trabalhem para preservar a antiga herança Bön como um tesouro para todos os tibetanos.

No Ocidente, as pessoas adotam uma atitude mais aberta diante da tradição Bön na medida em que aprendem mais a seu respeito. Em seus textos e tradições elas encontram um equilíbrio entre estudo e prática, entre fé e questíonamento crítico. Elas também descobrem que a tradição Bön, enraizada em tempos anteriores à história registrada, desenvolveu tradições de xamanismo, filosofia e debate, monasticismo, transmissões tântricas e yogas, bem como os mais elevados ensinamentos da Grande Perfeição. Embora este livro seja basicamente para prati¬cantes, espero que os estudiosos tenham uma ideia da profundidade e da varieda¬de das tradições espirituais Bön.

As práticas do caminho espiritual, quando feitas com o entendimento e a aplicação corretas, trazem resultados. Os resultados desenvolvem a fé. Quando é forte e baseada na certeza, a fé favorece a prática. A fé e a prática juntas conduzem à sabedoria e à felicidade.

Fonte: extraido do livro "A Cura através da forma, da energia e da luz" do Mestre Tenzin Wangyal Rinpoché.

Publicado por Thenebris

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